Arte contemporânea, transdisciplinaridade e Arte-educação

Os artistas, aos poucos, foram aprendendo a rapidamente incorporar, a fazer uso das tecnologias disponíveis. Isto cada vez mais imediatamente. Podemos citar os impressionistas pintando ao ar livre com o auxílio de tintas industrializadas e vendidas em tubos de alumínio que facilitam o transporte. Podemos citar Cezanne vendo a natureza formada por planos e cilindros utilizando-se de espátulas industrializadas. Podemos citar Picasso fazendo colagem com pedaços de jornal. Podemos citar Marcel Duchamp tomando definitivamente, como obra de Arte, o objeto industrializado, ainda que assinando-o, logo transformando-o.

A meu ver, a Pop-Art dá a partida para a utilização maciça, utilização positiva, dos materiais industriais, desde a utilização repetitiva de técnicas de impressão, até então utilizadas apenas para produções industriais (serigrafia, off-set), até as tintas automotivas, passando por pratos, cortinas de plástico... Dando, ainda, partida para a utilização crítica do lixo da sociedade (e) da sociedade do lixo.

Então toquei em dois pontos aos quais teremos que voltar: as utilizações positivas e críticas de técnicas e objetos industrializados, e a linguagem artística específica de cada técnica.

Em se tratando de Arte-Educação teremos que voltar, ainda, aos objetivos deste Seminário de "Arte-Educação", que tem como subtítulo "A Transdisciplinaridade Possível".

Cada nova técnica é criada com determinados objetivos. A litografia foi inventada para resolver os problemas dos altos custos da tipografia para a impressão de livros; a fotografia para resolver, definitivamente, o problema ou a solução da representação perspectiva. O rádio foi desenvolvido para a comunicação militar à distância, o computador para agilizar soluções de problemas matemáticos, para computar, ou ainda, para ordenar como dizem os franceses: ordinateur. Acoplado à tecnologia da televisão, o computador foi inicialmente utilizado para visionar campos inimigos. Estes objetivos são o que chamamos de "a positividade das tecnologias", objetivos para os quais foram criadas.

Vou dar aqui um exemplo mais palpável, literalmente palpável. Para fazermos Arte com terras (vermelhas, pretas, arenosas, férteis, ímpares) precisamos compreender as ligas possíveis de cada terra, sua solubilidade, as capacidades de modelagem, de secagem, suas possibilidades de misturar-se à outras terras, precisamos conhecer as temperaturas que suportam, conhecer suas propriedades químicas... Para fazermos Arte com terras faz-se necessário entender as linguagens destes materiais para revelá-los, para revelarmo-nos, e para revelar uma compreensão do mundo ímpar desfraldando todos os possíveis da matéria. Para fazer Arte com terras é preciso dominar o material da mesma forma como faz-se necessário esta compreensão para realizar um trabalho com as diferentes tecnologias com as quais somos confrontados. Estas tecnologias nos moldam como moldamos terras. Necessitamos dominá-las até se deixar dominar, detê-las quando o êxtase ainda quiser se fazer expandir, e entregar-se quando o suor inundar o confronto.

Conhecer implica demitizar, derrubar o mito imprescindível (?) [Sim, o mito é imprescindível, mas para falar a linguagem do material artístico é preciso desnudá-lo, para poder estar com, para poder ver; é preciso penetrá-lo na sua essência, sem aí depositar qualquer culto. Conhecer a fundo uma técnica permite questionar a positividade desta, aqueles objetivos primeiros, e, assim, só assim, revelar sua linguagem específica. Costumo dizer: Conhecer permite tratar com, tratar de, maltratar e trair. Me repito: para fazermos Arte com terras faz-se necessário entender suas linguagens, revelá-los, para revelarmo-nos, e revelar uma compreensão do mundo ímpar, descobrindo as especificidades, os canais que permitem o contato com esta matéria. E, como falo de tecnologias, faz-se necessário entender as linguagens das tecnologias para descobrir os canais que permitem o contato, não mais com o material mas com o imaterial. Cada nova tecnologia modifica o conhecimento que tenho de mim mesma (o espelho é uma tecnologia e quando nele me vejo compreendo-me sob sua ótica. A fotografia, o vídeo nos redimensionam), cada nova tecnologia modifica o conhecimento que tenho do outro, do outro e do outro, e consequentemente o conhecimento que tenho do mundo que me envolve, e este é, a cada dia mais, um todo, um todo globalizado. A Arte, necessariamente, é reflexo e reflexão sobre nossa realidade tecnológica.

Estamos falando das tecnologias que nos envolvem, me refiro à tecnologias de produção de alimentos (maçãs, tomates e alfaces são tecnologias), me refiro à automóveis, bens de consumo, eletrodomésticos, me refiro à telefones, computadores ligados em redes comunicacionais, à vídeo-games... Para falarmos das tecnologias que nos envolvem, para falarmos de nosso quotidiano gostaria de tomar emprestado o termo utilizado por Fred Forest(1) em 1983, quando este funda o "Movimento da Estética da Comunicação", este Movimento foi apresentado por Mario Costa(2) como "uma reflexão filosófica sobre a nova condição antropológica e, consequentemente, sobre as novas formas de vivências estéticas instauradas pelas tecnologias comunicacionais, bem como sobre o destino reservado, nessa nossa situação, às categorias estéticas tradicionais (forma, beleza, sublime, obra, gênio...)

Tentemos então ver o que há, a mais, além de reflexão filosófica, condição antropológica, vivências estéticas, tecnologias comunicacionais, forma, beleza, sublime, obra, gênio, por trás do termo "Estética da comunicação": A Estética é uma das disciplinas da Filosofia. Toda a História, toda a evolução do conceito de estética deveria ser re-analisada, a partir de parâmetros contemporâneos, assim como as categorias estéticas redimensionadas, o melhor exemplo é o tempo como elemento da linguagem artística. A Estética pensa, tanto o belo da natureza, quanto a Arte. Pensando o belo da natureza deveríamos, hoje, chegar até à Ecologia. Na Arte vemos cada dia mais se estreitarem os laços entre Artes visuais, Artes cênicas e música: Performance, Instalações, Vídeo-arte, Arte interativa via redes de comunicação. Arte e Arquitetura: todo o contexto da galeria está em cena quando fazemos uma instalação. A Arte estreita, cada dia mais, os laços com as indústrias: das tintas às máquinas pesadas se tornam objetos estéticos, passando por objetos de uso dos quais, por vezes, esquecemos as cargas tecnológicas. A Arte implica inserção em um contexto sociológico, e antropológico como quer Mario Costa. Arte e Comunicação são linguagens (retórica, sintaxe, gramática), ainda que a Arte seja, por vezes, linguagem da ordem do grito. Os meios de comunicação atuais envolvem tecnologias audio-visuais e Ciência da computação (lógica e matemática). Abraçando o planeta, com estes meios, somos levados à pensar políticas e economias internacionais, e, consequentemente, nos vemos envolvidos no incessante processo de Globalização. Nosso espaço atual, o ciberespaço (Roy Ascott e Pierre Lévy) é hiper-transdisciplinar.

Nossa contemporaneidade está toda plena de tecnologias, e estas tecnologias envolvem, como vimos, diferentes, senão todas, as disciplinas do conhecimento humano (Estética, Antropologia, Sociologia, Comunicação, Ecologia, linguagem,...). E, a Arte, necessariamente, é reflexão e reflexo da nossa realidade, uma realidade "grávida de um avião"(3), grávida de tecnologias. Seria importante realizar, aqui, uma reflexão sobre o trabalho em grupo, condição sine quoi non, para se realizar um trabalho com Arte e tecnologias complexas, no entanto, não desejo muito me estender.

Quanto à Arte-educação, é imprescindível dar aos alunos as possibilidades de trabalhar com estas linguagens contemporâneas da Arte que são as suas, com as quais nasceram e que mitificam, por desconhecê-las; e que mitificam como deseja a mídia. A mídia sabe que o mito gera desejo, um desejo insano que só o compreender pode vencer, e por isso mesmo alimenta o mito. Com as tecnologias da imagem-movimento contemporâneas, os jovens estão, definitivamente, envolvidos: fotografia, televisão, vídeo, vídeo-game, diferentes softwares para computadores, e as redes de comunicação. Preparar cidadãos, para o futuro, significa preparar cidadãos para estarem cada vez mais envolvidos por estas, e outras, tecnologias.

É imprescindível, primeiramente, que estas tecnologias sejam demitizadas pelas Instituições de ensino. Os equipamentos são caros mas podem ser conseguidos.

Urge formar (re-formar) os professores. Hoje, a cada quatro anos, as tecnologias evoluem de tal forma que podemos nos considerar defasados. Não digo reciclar, mas re-formar, formar, fundamentar conhecimentos sobre as tecnologias: conhecimentos técnicos e teóricos sobre as implicações da presença maciça da Tecnologia. Urge fazer estas compreensões por todos os professores de todas as áreas de conhecimento. Urge equipar e dar aos professores as possibilidades de lecionar Arte com estes novos meios não tão novos, meios transdisciplinares, de expressão.

Cito então para terminar um pequeno trecho do livro CAOS de James Gleick, editor e repórter do New York Times, é "o trabalho excepcional, não ortodoxo, que cria revoluções." Uma revolução tem um caráter interdisciplinar –suas descobertas principais vêm, muitas vezes, de pessoas que se aventuram fora dos limites normais de suas especialidades." Os problemas que preocupam esses cientistas "não são considerados linhas de investigação legítimas" (4).

Não vejo o problema levantado por Ana Mae já que a Arte-educação é, por definição, e em sua essência, de caráter interdisciplinar (Arte e educação), e exatamente por ser interdisciplinar é revolucionária, é linha de investigação, até agora, ilegítima. Cito as palavras de Gerd Bornheim, ditas na Abertura deste Seminário, há dois dias. na Arte-educação tudo são problemas e a vantagem são que problemas incitam a reflexão.
autora deste texto: Maria Beatriz de Medeiros

(1) Fred Forest, nascido em 1933, na Argélia, é artista da comunicação. Ele foi o primeiro a utilizar o vídeo na França. Obteve o Prêmio de Comunicação na XII Bienal de São Paulo, e representou a França na XXXVII Bienal de Veneza. Em 1974 fundou o Collectif Art Sociologique juntamente com Hervé Fischer e Jean-Paul Thénot.

(2) Costa, Mario, L’estetica della comunicazione: cronologia e documenti. Salermo, Palladio, 1988, p. 18, citado por Annateresa Fabris, na Introdução do livro Sublime Tecnológico de Mario Costa, São Paulo, Experimento, 1995, p. 7.

(3) música cantada por Marina Lima

(4) James Gleick, Caos. A criação de uma nova ciência, Rio de Janeiro, Campus, 1990, p. 32 e 33.
fonte:http://www.corpos.org/papers/transdiciplinaridade.html

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